fevereiro 24, 2009

PARA SEMPRE

De uns tempos para cá (não vem ao caso, quando nem porque), me dei conta da precariedade das relaçôes literárias Brasil-Portugal. Encontramos com facilidade livros traduzidos até do albanês, enquanto ainda continuam sendo raros os títulos da boa literatura em nossa própria língua. Vergílio Ferreira é um dos exemplos acabados do que afirmo. Trata-se de um dos maiores nomes da literatura portuguesa do século passado,(leia mais clicando no título), e não temos praticamente nada da sua vasta obra.
Vergílio Ferreira (1916-1996) nasceu em Melo, no concelho de Gouveia,uma aldeia com vista para a serra que tanto influenciou a sua obra – a Serra da Estrela .
No romance PARA SEMPRE é para esta paisagem que conheceu na infância que o personagem regressa: a casa da família, a paz da aldeia no seu ritmo sereno, a coragem e resignação de suas gentes, os seus cantos no trabalho, preces e tradições.
A montanha é um local real e mítico. O seu silêncio, encantamento e mistério é tão marcante em sua obra, comparável à obsessão com que Cézanne pintou a montanha St. Victoire, a imensa massa de granito, ora coberta de neve, ora vestida de verde ora estalando ao sol.
Em PARA SEMPRE que se passa numa tarde de verão a montanha está sempre presente :
Está uma tarde quente . Céu de zinco carbonizado. O longe, a montanha, uma grande pedra ao sol.
...um olhar suspenso na serra ao longe,na linha ondeada do seu cume
Sento-me à varanda - aqui estou. Vida finda . Mas não perguntes . E do que o ordenasse o universo - não penses. A palavra, ainda, se ao menos .A palavra final. A oculta e breve por sobre o ruído e a fadiga. A última , a primeira. Em frente, a toda a largura, o ondeado da montanha. O sol embate contra ela desnuda-a até a aridez.
Pela janela aberta , o horizonte longínquo , a linha ondulante da montanha quase apagada num tom violeta.
Depois abro as vidraças, a montanha ao longe em toda a sua magnitude. E uma pequenez em mim súbito sentida , um pasmo sideral de horizontes.
Morte de mim, do meu tempo, Deus entreabre um olhar no silêncio do campo de ruínas. Depois abro a vidraça, a montanha ao longe em toda sua imensidão. Pesa em toda sua massa sobre a terra, ondeia numa linha fina até ao esvaimento dos meus olhos.
Estás só, não há ninguém a ser público à tua volta.Nem tu. ...Dos quatro cantos do mundo, estou parado à varanda, a montanha aguenta no dorso toneladas de calor.
Ao longe, desdobrada a todo o horizonte, densa, a montanha. Arde ao sol na sua combustão mineral. Amaldiçoada de calor , quieta a aldeia sob a pata de fogo imóvel no seu recovo, fico a olhá-la um instante, tomar posse do meu destino final.
Está uma tarde quente. A montanha à minha direita , desdobrada na sua aridez, o sol requeima-a de maldição. À esquerda, o vale.
Um vento largo, vindo das origens do cosmos, passava em vaga de augúrio. Ao fundo a montanha, plácida de eternidade.
Estou bem. Há tanto tempo ainda para não estar. Olho a montanha iluminada ainda de sol.Quero vê-la ainda, não com o ver fortuito e sabido de cor, mas com um ver intrínseco à realidade única de haver sol e montanha e o fantástico até aos gritos de haver essa coisa, de haver uma montanha contra o céu toda iluminada de sol. Enterro o meu olhar nessa realidade febril de um lume vivo que traz à vida essa coisa pesada e escura que é um vasto aglomerado de terras e de pedras, a faz brilhar contra a treva e inexistência que é a sua com um milagre de esplendor. Tenho de reparar vivissimamente nas coisas, enquanto são ainda coisas para reparar, fixar-me no instante em que uma cor e miraculosamente uma cor, e um cheiro me afecta na sua realidade misteriosa e um som, um ruído.

PARA SEMPRE é umas das obras de Vergílio Ferreira (a outra é APARIÇÃO - postagem de junho 2008) identificada como nitidamente existencialista.
O mundo é privado de sentido e a solidão um último refúgio para a dor de viver e morrer sem explicação. Da irracionalidade dos fatos do dia a dia e de situações completamente banais, nasce o sentimento do Absurdo que nos remete a Camus. A "paisagem de sentimentos" que se vislumbra tem na solidão um dos aspectos mais profundos da condição humana e aparece regida pelo silêncio de quem não se integra e/ou de quem procura respostas.
Nas questões como a inevitabilidade da morte e (in)existência de Deus, a da solidão dos que estão no fim da vida, já perderam o amor, a esperança e procuram um sentido para a vida que se gastou:"Não posso apresentar-me assim de mãos vazias perante a morte, a morte tem de matar alguam coisa, não tenho quase nada para matar… "é o que me parece de mais trágico.
O que diz o próprio Vergílio Ferreira acerca do seu existencialismo:
“O existencialismo ergue o seu protesto, afirmando que o Homem é pessoalmente, individualmente, um valor; que a sua liberdade (em todas as suas dimensões e não apenas em algumas) é uma riqueza, uma necessidade estrutural de que não deve perder-se entre a trituração do dia-a-dia; e finalmente que, fixando o homem nos seus estritos limites, só por distracção ou imbecilidade ou por crime se não vê ou não deixa ver que ao mesmo homem impende a tarefa ingente e grandiosa de se restabelecer em harmonia no mundo, para que em harmonia a sua vida lucidamente se realize desde o nascer ao morrer. (...) Mas eu jamais me disse "existencialista", embora muito deva à temática existencial e pelo Existencialismo tenha manifestado publicamente o maior interesse. É que aceitarmos um rótulo automaticamente obriga a aceitar-lhe todas as consequências, entre as quais a de nos responsabilizarmos por tudo quanto sob este rótulo se disser ou fizer.Por mim, preferia definir o Existencialismo como a corrente de pensamento que, regressada ao existente humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar. Ou então - e paralelamente ou implicitamente a essa definição - preferiria dizer, continuando Sartre, aliás, que o Existencialismo é uma corrente do pensamento que reabsorve no próprio "eu" de cada um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou preferentemente da sua profunda vivência.''

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