outubro 20, 2008

Mais de 24 horas na vida de duas mulheres.

"Graciosa, fina e discreta no trato, suave e calma (se não estivesse zangada), conheci-a num desses festivais que os jovens freqüentam nas férias. Fazíamos um curso de Música Antiga ministrado por Helder Parente. Naquele momento Fátima cursava o último semestre da sua licenciatura numa Faculdade Evangélica e morava com umas amigas que em diferentes momentos também tive contato. Pergunto-me até hoje o que nos aproximou assim à primeira vista. Acho às vezes que foi porque nós duas éramos o que na minha terra se chama “sem eira nem beira” ou melhor, “soltas na buraqueira da vida”. Meu espírito debochado talvez tenha funcionado como atrativo pois vi logo que ela tinha facilidade para sorrir e topava toda sorte de brincadeiras. Sendo eu mais velha, me via como alguém mais experiente, não sei. Uma experiência e proteção que ela precisava nos seus vinte anos? Não creio pois para mim ela já nasceu feita e no fundo não precisava das pessoas. Se saia bem onde quer que estivesse. Gostávamos da sociabilidade que a música proporcionava, não resta dúvidas. Com certeza gostávamos também de dar aulas mas nada disso seria suficiente para que nos tornássemos amigas, companheiras, cúmplices, confidentes por tantas décadas. O que é certo é que depois desse curso ela já iria de férias comigo para Fortaleza. Nessa época, por força das circunstancias eu ganhava o sustento dando aulas de Flauta Doce. Utilizando o repertório da Música Popular como referência, fazia os arranjos e programava apresentações. Já tinha uma pequena orquestra e dois outros conjuntos menores de alunos que aprendiam música com este instrumento. Já tinha um trabalho conhecido e recebia muito incentivo principalmente do nosso professor Helder Parente. Fátima ficou em minha casa e comigo acompanhou as aulas, foi acolhida pelos meus alunos e por minhas amigas. Depois disso, combinamos de nos encontrar nos festivais (Campos de Jordão, Brasília, onde quer que Helder Parente estivesse lecionando). Num desses eventos em Brasília eu recebi um telefonema da Escola de Música do Estado do Maranhão (EMEM). Olga Mohana, cantora e diretora da instituição, me perguntava se eu não gostaria de assumir umas aulas de música na escola em São Luiz. A indicação viera de uma amiga comum- Elba Ramalho, professora de música na Universidade Estadual do Ceará. Aceitei o convite, visto que não via muito futuro para mim vivendo de aulas particulares em Fortaleza. Na mesma ocasião Olga me pedia para procurar alguém que estivesse disposto a dar aulas de teoria e reger o coral da escola. Fátima aceitou na hora mudar-se para São Luiz e assumir as disciplinas. Combinamos no entanto que este seria um tempo de experiência pois ambas pensávamos em estudar fora do país. Ela tinha conhecido nesse festival, uma austríaca (Gigi) que a incentivara a estudar na Áustria. De minha parte, já tinha estudado na Alemanha e pensava também em voltar à Europa.
Éramos cinco professores (Roberto, Vitor, Marcelo, ela e eu) recém contratados pelo governo do Maranhão para dar aulas na EMEM. Morávamos no Convento de Santo Antônio a 200 metros da escola e fazíamos refeições na casa da D. Maria (secretária da escola). Era uma vida regrada porque o salário não permitia muita liberdade econômica mas o trabalho era gratificante. Fora disso, aquele tempo foi o ápice de todas as peripécias que cinco jovens poderiam ter feito na vida; soltos, loucos e sozinhos no mundo, sem amarras pra imaginar o que quer que fosse que nos divertisse. O que aprontamos em São Luiz daria um livro (censurado). Nos divertíamos até com nossas brigas pois depois, encenávamos o acontecido para rirmos em grupo. Ela costumava dizer para mim: não adianta, você é que pode ouvir e entender minhas loucuras e eu as suas.
Mas nossa convivência foi além das brincadeiras. Como colega de trabalho vivenciei todo o seu entusiasmo, sua força invulgar como professora, sua leveza, seu bom humor e sua capacidade de seduzir a todos. Desde o início, se abriu para conhecer pessoas, lugares, não ficando presa ao grupo que tinha chegado de fora e que se limitava às aulas e ao estudo. Sua disposição para viver qualquer experiência de vida nos impressionava. Participava de grupos de choro na cidade, dançava o carnaval de “fofão” passava fins de semana fora com novos amigos, freqüentava algum tipo de terapia em grupo etc. Tornou-se rapidamente conhecida na cidade e posso dizer que também marcou a EMEM como professora.
No início, quando não conhecíamos muita gente em São Luiz, nos reuníamos nos fins de semana nos alpendres do convento pra conversar besteira (1) e para tocar. Eu fazia os arranjos para os instrumentos que tocávamos (viola, flauta doce, violoncelo e violão) e ela e o Vitor davam sugestões de melhoras. Nada sério! Só para nos divertir. Com o tempo começamos a fazer reduções e adaptações de peças barrocas. Chamávamos os alunos mais adiantados para se juntar a nós e fomos preparando um repertório de verdade; músicas populares(2) , danças da renascença e umas peças barrocas para 2 flautas e cravo que adaptamos para o violão e o violoncelo fazia o baixo. Um dia, no intervalo das aulas fizemos uma apresentação da nossa camerata nos corredores da Escola de Música. Na última música todos trocaram de instrumento e executamos uma peça popular com arranjo meio jocoso. A direção da escola nos chamou e para nossa surpresa nos propôs que levássemos a sério o projeto pois já tinha até nome pronto para dar ao grupo. Que projeto que nada! Ficamos foi apavorados com esta idéia pois tínhamos consciência de que para representar a escola precisaríamos pensar mais do que em brincadeira. Conseguimos driblar a proposta dando um nome ao grupo. A Camerata Santo Antônio foi um tributo às freiras e padres que tinham nos acolhido no convento e assim nos desvencilhamos do assédio e conservamos o espírito descontraído do conjunto. Nos apresentamos bastante nos eventos da escola e até no Teatro Arthur Azevedo. O grupo só perdeu a força quando o Vitor voltou para Brasília indo depois para a Inglaterra e ela se preparava para deixar o país. Depois foi eu mesma que deixei a escola e fui para Suécia. O Roberto foi para Minas e depois para Goiânia ficando somente o Marcelo em São Luiz.
A partir daí nosso contato foi esporádico; uma carta, um retrato, um postal de vez em quando. Quando voltei para o Brasil ela me visitou em Brasília. Também constei como orientadora de um projeto que fez com a Cláudia Dias na Pró-Arte e que recebeu ajuda do CNPq. Fizeram várias apresentações em Brasília com muito sucesso. Digo que constei, porque na verdade elas não precisavam de orientação alguma. Como minha proximidade era maior com Fátima, sabia de seu potencial e competência para fazer o que se propunha no projeto e isso era tudo. Muito envolvidas com nossas atividades profissionais, nos encontrávamos quando por algum motivo ela vinha a Brasília. Eram encontros sempre alegres e reconfortantes. Como se cantássemos uma para a outra:
Eu quero te mostrar as marcas que ganhei nas lutas contra o Rei/ nas discussões com Deus/ e agora que cheguei eu quero a recompensa/ eu quero a prenda imensa dos carinhos teus.
Custo a acreditar que os demônios desapareçam para sempre da face da terra! Principalmente aqueles de porte pequeno, de mãos limpas e pequeninas. Fico sempre atenta pois se ouço o barulho de um par de sandálias baixas que adornam um caminhar ligeiro, começo a desconfiar de que possam estar por perto. E se o dono desse andar se aproximar e falar suave e calmo como o toque de uma pétala, confirmo minhas suspeitas; ele está voltando. Devagarzinho, nada de cheiro de enxofre. Isso assusta. Alfazema é mais apropriado por não oferecer resistência nem perigo aos sentidos. Nada de “chispas” ou palavrões. Na conversa, uma risadinha vinda da garganta, mais pra pigarro do que pra riso, é a senha! Dou mais outra pista: se algum dia você receber uma mensagem e esta precisar de um espelho para ser lida, e o próprio invólucro for de papel de jornal, não adianta fugir, pois ele já se instalou. A partir dali seu lugar no mundo será de algum modo marcado por ele.
Pela minha experiência com os demônios sei que eles não nascem, simplesmente aparecem... e em qualquer época e lugar. Lá ficam numa espécie de letargia até livrar-se de todas as camadas espessas que o embaraçam e impedem seu caminho. Isso pode durar até séculos, milênios mas um belo dia eles viram seta e se jogam para o alto rompendo todos os obstáculos. Começam a subir, subir, subir e lá em cima depois de fazerem um grande arco voltam disfarçados; olhos claros, cabelos ralos, corpo pequeno, andar cadenciado como a graça dos movimentos de um pandeiro num conjunto de choro. Asas ainda úmidas pelas partículas de água das nuvens na viagem de volta. Penas e plumas tão definidas e de movimentos tão precisos que só os mais avisados percebem.
Eu posso dizer que conheci, vi e vivi com uma dessas entidades. Ele aparecia de vez em quando. Vinha, mostrava as novidades em diabruras, ouvia as minhas e desaparecia. Certo dia lhe fiz uma pergunta infantil: para que tanta força e precisão de movimentos nas asas? Porque é com elas que os demônios constroem castelos sonoros, despertam sonhos em crianças, deixam lições em pentagramas. E é com elas que transcendem ao tempo e ao espaço, me respondeu. É ... assim é que são os demônios!
A última vez que este me apareceu usava saltos alto e vestido de griffe. Já viu? Deu-me vontade de rir da mudança...da sofisticação. Pensei: o que deu nele dessa vez, escondendo-se por trás de um perfume da L’Occitane? Será que perdeu a identidade, se avacalhou e por algum motivo virou gente? Ou tá gozando com minha cara? Qual nada! Depois de algumas palavras e risadas avistei entre seus cabelos ralos e estirados dois toquinhos que ao contrário do que eu pensara tinham crescido bastante. Baixei a vista e vi bem direitinha a assombração nos seus pés. E para confirmar a origem do desgraçado ele começou a me mostrar sua bagagem. Foi remexendo e retirando panelões, vidrinhos com poções e livros de receitas de diabruras que ele me explicava de uma por uma. Finalmente, do fundo da mala retirou e me mostrou a maravilha de um tridente de ouro cravejado de brilhantes que a vida e a profissão lhe presenteara. Mais que de repente soltei um ARRE ÉGUA bem alto e dei um pulo para traz sacudindo os braços! VALEI-ME MEU SÃO CIPRIANO! É ELE MESMO! Nada mudara. E aí então foi só entregarmos os ouvidos aos trítonos da vida.
Antes de desaparecer prometeu voltar em Outubro. Depois me deu sinais de que vinha para me mostrar sua última novidade. O que estará aprontando desta vez, pensei. E esperei. Não veio... "
Mércia Pinto
Setembro de 2008

(1) Entre as brincadeiras nas horas de folga, fizemos um projeto para a “Hochschule der Samba”, uma escola onde europeus pudessem aprender música brasileira com imersão total na cultura tupiniquin. Concebemos desde o conteúdo das disciplinas ensinadas, laboratórios e até os dormitórios e os banhos de sol para tostar a pele dos branquelos que chegassem do lado de cima do Equador, pois sem isso não poderiam sequer se inscrever nos cursos.
Como vínhamos estudando flauta doce mais seriamente, tentando executar as peças com todas as diferentes ornamentações da música barroca e renascentista, resolvemos fazer uma gozação em cima do assunto. Planejamos então um livro sobre ornamentação na Música Brasileira com sinais, execução e demais explicações. Tomamos como modelo os diferentes intérpretes da música popular, cada qual com seus cacoetes de interpretação. (2)Marchinhas de carnaval, tangos, fados, chorinhos, baiões etc.


"Esse pequeno texto é o testemunho do grande carinho e admiração que tenho por uma amiga. São amostras de sentimentos, de referências afetivas que se ampliam, se reduzem, se refazem, se espelham, mudam a tonalidade, às vezes parecem gritar e se invertem em forma de eco. Transitam pelo grave e pelo cômico. Para quem nunca experimentou, parecem fáceis. Enganam mas nunca se desfazem porque nas suas variações conservam sempre o tema original do RASGA CORAÇÃO".

Recebi este texto para ser lido ouvindo a música: Variações sobre o tema do Rasga Coração (composta por Ronaldo Miranda) de Anacleto de Medeiros, compostas para piano a 4 mãos,executada por Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini. Lamentavelmente não irei conseguir trazer a música, para completar a homenagem à Fatima Regina Pereira (Tina Pereira).

3 comentários:

Anônimo disse...

Que delícia de texto! A gente realmente desliza por dentro dele, pelos seus meandros, fazendo isso com uma mistura de curiosidade e prazer de leitura, para, rapidinho, lamentar ter ele chegado ao fim. TL

Anônimo disse...

Mércia,
Mamãe está, finalmente, mais uma vez, orgulhosa de tí!
(Está lindo o texto. Parabens!)
Ela só espera agora que tu ocupes, finalmente, a Cadeira Cecília Meireles na Casa de Juvenal Galeno...

Anônimo disse...

..lita : me junto ao coro : que texto delicioso !!!!!!!