Este email recebi hoje. É de momentos como o que nele se descreve que a vida, e o que chamam de felicidade, é feita. Só disto. E é dessa maneira que continuo presente, na lembrança e na saudade! Vejam se nao é puro afeto!
"Querida Zélia, lembrei muito de ti nesta última noite. Convidei uns amigos para um jantar aqui no meu apartamento. Vieram a ***, o ***, a *** (meus dois professores de Gramática Grega) e a *** (professora de literatura inglesa). Faltou o ***, professor de espanhol. Pois bem, o convite de ontem, era bem em torno de uma vontade dele em rever a *** e presenteá-la com um DVD de um filme mexicano dos anos trinta que ele conseguiu baixar e, com a ajuda dos conhecimentos de francês dela, reproduzir a capa com os créditos em português.
Lembrei de ti também - ou principalmente - porque fiz um prato que queria ter podido fazer para ti durante tua estância fortalezense, mas as nossas vidas andaram tão cheias de compromissos entrechocantes que não consegui realizar meu intento. Sempre busco cobaias com sangue bom, ou seja, de quem eu goste tanto, que a comida certamente sairá boa. Jogo meu afeto dentro dela. Alguns percebem, outros são tão gulosos que só sentem o prazer da gula.
Ontem à tardinha debrucei-me sobre meu "talento" (?!) e escaldei o polvo numa água com cebola e um bouillon de lagosta que eu havia guardado no congelador para essas eventualidades. O molusco cefalópode octópode (acabo de vir da aula de Grego!!) ferveu e cozinhou durante mais ou menos uma hora, e, depois, quando já estava bem tenro, tratei-o (já o havia comprado sem a tinta) e em seguida cortei-lhe o corpo e os tentáculos em rodelas finas. Uma parte das rodelas, usei para fazer uma vinagrete que foi servida como uma das entradas, e a outra, reservei-a para o arroz, para que também compusesse a piéce de résistance.
Ao se trabalhar o polvo, sobretudo com as mãos e os olhos, não se pode deixar de pensar nas conotações eróticas que o bicho suscita. É muito viscoso e tem formas muito características. E é todo roxo, ainda por cima! Mas nada que remeta a políticos que afirmam ter aquilo roxo. Mais nobres são os polvos.
Lembro-me agora de um belo livro da escritora Isabel Allende que minha amiga Zélia me deu. Afrodite. É um passeio em que se degusta a cozinha, mas, ao mesmo tempo, o erótico, o sensual, as chamas do desejo de comida no mais lato senso. Lindo livro, cheio de belas gravuras (minha avó falaria em cromos!). Eu, que sou fã do livro "Como Água Para Chocolate", da escritora mexicana Laura Esquivel (assim como adoro o filme), acho que "Afrodite" ganha de mil a zero.
Cozinhei o arroz na água que havia sobrado daquela fervura de uma hora em que se debatera o polvo morto, ou seja, numa água que já estava bastante arroxeada pela cor da restante tinta que o organismo do polvo ainda liberara. Quando o arroz já estava secando, deitei-lhe (para lembrares do portuga!) dentro as rodelas de polvo devidamente temperadas com ervas frescas (alecrim, manjericão e hortelã) e gengibre fresco ralado na hora. Noz moscada, um pouco de cúrcuma e caril também não faltaram. Servi o arroz como acompanhamento de um frango que assei no forno, em pedaços também temperados com gengibre, pimentão de três cores, cebola, alho, manjericão e alecrim, antes submetidos a um processo de refogado. Como sobremesa, servi uma mousse de graviola com morangos, que eu mesmo fiz. Acho que, desta última, terias declinado, ainda que a contragosto. Para evitar o retrogosto!
Lembrei de ti pela comida, mas também pelas músicas aqui ouvidas que eu queria ter-te dado gravadas em CDs, mas que, devido a toda aquela azáfama em que me encontrava com a visita ludovicense chez moi, não pude fazer. Castiguei também nos clássicos, que reencontrei um pouco durante a visita brúnica, a começar por uma série de música barroca italiana, mas também Bach e belas Ave-Marias, que também pus a tocar, em parte, na noite em que jantaste conosco. (Adorei tua presença naquela noite, no jantar a três, gostei do teu bem à-vontade nas conversas com ***, que, por sua vez, não fez diferente.) Depois descambei para aqueles CDs novos da Ro Rô, da Zélia Duncan com a Simone (promessas vãs titolivianas, afirmo-o lívido!), os dois da Bethânia que eu adquiri no Rio e que se tornaram dois amigos de infância meus.
Enfim: foi uma bela noite! Pude ainda saborear um dos meus vinhos preferidos, o Flichman argentino, tinto e seco como eu gosto. Mas também respeitei o gosto dos outros (que preferiram, alguns, minha antologia de sucos, outros água, ou então foram obrigados a fazê-lo por medo do bafômetro; mas a ***, que é baquiana como eu – mas não mais balzaquiana, da mesma maneira que eu - preferiu curtir o "culto a Baco" comigo [infelizmente os teus concidadãos florianopolitanos ou barrigas-verdes em geral não devem conhecer este jogo de palavras, não é?]).
Tivemos também um breve sarau lítero-erótico com leituras das cantigas de maldizer e das cantigas obscenas escritas naquele galaico-português dos idos do século 13, que já conheces, além de um belo texto do João Ubaldo, que também já deves ter lido, em que ele descreve as aventuras e desventuras de Alandelão de La Patrie (assim mesmo! lembras do hilário conto?), um loiro touro reprodutor francês de caríssima estirpe, que, ao chegar na Terra Brasilis, resolve não querer trepar com as vacas que se enfileirariam para receber o benfazejo e suculento vergalhão. No decorrer do conto, não sei se te lembras, Ubaldo narra as mais inusitadas e diferentes formas de diversos bichos praticarem o ato sexual, a foda, a trepada, desde o calango com a calanga, passando pelos gatos, até a pata fazendo putaria de rosca com o pato.
Desculpe te incomodar desta vez com um e-mail bem diferente e, espero, leve. Mas saudade só é boa assim: quando a gente tem vontade de ter podido compartilhar um momento bom com mais uma pessoa amiga/querida. Cuja amizade a gente quer zelar, Zélia, porque faz bem. E é assim que vejo isso. Assim. E eu estou todo assim hoje. Não rias assim não, não penses que baixou um *** em mim. Também tenho meus momentos para ser assim. Ou assado.
Pena que não estivesses aqui!
Um abraço grande do amigo"
Um comentário:
Belo email, belo amigo, bom texto: franco, afetuoso e direto. Gostei!
Lalá
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