Por CARLOS NADER colunista da revista TRIP
“É proibido proibir”, dizia o mote de maio de 68, sintetizando o vento libertário que começou a soprar naquela época. Fazia todo sentido, num mundo que ainda não tinha se livrado de ditaduras ambidestras e de moralidades sem nenhum jogo de cintura.
Fazia. Hoje, “é proibido proibir” pode servir melhor como lema de traficantes ou corruptores. Foram os próprios ventos da liberdade conquistada que, com os anos, arrancaram uma a uma as capas heróicas da frase estudantil para deixar nu todo seu simplismo. Liberdade é uma idéia livre e, por isso, bem mais complexa.
Até “prisão” pode significar “liberdade”. Sabemos disso desde pelo menos a Grécia antiga, graças à visão luminosa que o poeta cego Homero nos dá em sua Odisséia. Nela, sabemos, Ulisses se faz prender no mastro do próprio barco para resistir às sereias, cujo canto hipnótico, este sim, o prenderia para sempre. Aprendemos assim que a decisão autônoma de se privar da própria liberdade pode garantir, muitas vezes, uma liberdade mais plena.
O gesto libertário de Ulisses é resultado do conselho de uma feiticeira, Circe, mulher sabedora de que as leis da vida têm meandros que escapam ao raciocínio dos retos
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Mas ainda encontra muito eco por aí a idéia de que todo e qualquer questionamento das liberdades conquistadas desde a segunda metade do século 20 seja uma espécie de blasfêmia moderna. A sacralização dessas liberdades, ainda que geralmente ungida por setores bem-intencionados, como a imprensa ou os liberais econômicos, pode acabar servindo aos interesses de quem justamente quer ver menos liberdade no mundo. Entre eles, todos os que têm interesse, por exemplo, em que um escândalo de jornal apague rapidamente o outro ou que centenas de novos produtos sejam lançados só para tornarem démodés os anteriores.
Sei que a questão aqui acaba se tornando complexa demais para uma solitária página de revista. Ainda que não possa estar sujeita a cânones “imexíveis”, a demarcação da liberdade dos outros tem que necessariamente passar por uma discussão bem mais ampla e demorada. Caso a caso.
Já no que diz respeito à privação das próprias liberdades, o processo pode ser muito mais simples. Numa época que está se definindo por um laissez-faire pra lá de insustentável, por um excesso de produção e consumo tanto de mercadorias quanto de informações, é muitas vezes necessário decidir amarrar-se a mastros. É preciso ser bem mais cego que Homero, ou mais burro que o Homer, para não ver que há algo de muito atual no gesto de Ulisses e, grego por grego, entender que é libertador permitir-se ser às vezes um delegado Protógenes* de si mesmo.
A fartura sedutora que hoje é oferecida ao cidadão urbano tem se transformado num canto de sereia escravizante. Autodetenções podem vir a ser muito libertárias. Em pequenas coisas. Sei lá. Trancando o celular na gaveta durante todas as manhãs. Bloqueando a caixa de e-mails no fim de semana. Exilando-se da TV por um mês. Detendo-se todo dia diante de uma compra compulsiva. Fechando a boca periodicamente, seja para comer menos, seja para ouvir mais. Coisas simples assim. Que mudam tudo. A escolha depende de cada um. Cada macaco no seu mastro. Disciplina é liberdade. É permitido proibir-se.
* Delegado da PF protagonista do antepenúltimo "escândalo".
Um comentário:
Acabei de bisbilhotar o teu blog e tenho mil motivos para pensar no artigo do Carlos Nader quando ele diz que "até a prisao pode significar liberdade". Pois nao é que eu acho que ele tem razao. A gente mais cedo ou mais tarde é preso pelas garras do amor. Existirá prisão mais prazerosa que essa? È bom demais, mesmo que depois se pare na trincheira da terapia...
Hugo
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