abril 25, 2008

Une femme amoureuse


A M É L I A

Helena, Luiza, Mariana, Laura, Dora, Maria... todas são musas da música brasileira, mas mirem no exemplo de Amélia, a musa proscrita. A música composta por Ataulfo Alves e Mário Lago ("Ai, que saudades da Amélia") foi tachada de hino machista a ponto de Amélia virar sinônimo de mulher submissa. Mas não é por ser um clássico do nosso cancioneiro que venho aqui defendê-la. Conta a letra:
Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!"
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade


A música conta a história de um homem dividido entre duas mulheres. A primeira é exigente, vaidosa e fútil. A segunda é a mulher solidária, que está com o seu companheiro para o que der e vier. É claro, não se deve perder a perspectiva histórica de uma música escrita nos anos 40, tempo em que só restava à mulher o papel de solidária — entenda-se, coadjuvante do marido.
Por que Amélia incomoda tanto? Porque a mulher moderna é exigente, não exatamente por luxo e riqueza, mas por exigir seus direitos de igualdade.
Nesses tempos individualistas, a solidariedade de Amélia não cai bem. Será que a mulher está absorvendo os valores masculinos para ser vencedora dentro de um capitalismo selvagem nada solidário? Será que ela está mais ciente de seus direitos que de seus deveres? Ser livre versus ser responsável? Não são questões exclusivamente femininas.
Acredito que, na busca de uma liberdade cada vez mais idealizada, quase religiosa, mulheres e homens muitas vezes passam por cima de valores como responsabilidade, respeito e solidariedade.
Outras músicas retratam mulheres passivas, mas ninguém questiona. Por exemplo, "Camisa amarela" de Ary Barroso conta a história da companheira do boêmio que suplica "...convidei-o a voltar pra casa em minha companhia, exibiu-me um sorriso de ironia e desapareceu no turbilhão da galeria...", terminando por assumir que "...o meu pedaço me domina me fascina, ele é o tal por isso não levo a mal...".
"Com açúcar, com afeto", de Chico Buarque, conta uma história parecida, a da mulher que imagina o marido boêmio "...olhando as saias de quem vive pelas praias...", e, abnegada, confessa: "...logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você...".
O problema de Amélia é que ela é solidária, acredita num amor e uma cabana, e ainda se aspira um modelo da mulher de verdade. Insuportável, não? Mas prestem atenção nas coisas do passado que ainda incomodam no presente.
Todos querem ter "atitude" — modernos, polêmicos e ousados —, mas quando todos são originais ninguém é original. Original, talvez, seja ir na contramão e resgatar o passado no que ele tem de bom, é claro.
Resgatem a Amélia que existe dentro de cada mulher. Com ela, o mundo pode ficar mais tolerante, compreensivo e solidário, sem ser necessariamente submisso.
Amélia íntegra, sem divisões, é que é a mulher de verdade.
LEONARDO DRUMMOND (O Globo, hoje)

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