A carta de Caminha como certidão de nascimento do Brasil é uma invenção do século XIX (foi publicada integralmente apenas em 1817). Neste mesmo século se iniciou a construção da identidade da nação através da arte, da história e da política, buscando-se as raízes históricas para o país cuja independência fora recentemente proclamada.
A obra acima, em exposição atualmente em Florianópolis, terra natal de Victor Meirelles, foi baseada não só na descrição feita pela carta de Caminha, mas também no quadro do francês Horace Vernet,(Premiére messe en Kabilie, de 1855)- foto à direita
A partir de então, o acúmulo de referências e recriações dessa obra acrescenta-lhe novas camadas de sentido. Uma das últimas intervenções em que se percebe essa intenção foi a da pintora portuguesa Paula Rego, que, em 1993, apresentou o quadro A primeira missa no Brasil.
É justamente por esse diálogo com a tradição que deve ser compreendido.
Nasce um filho e um povo
Ao colocar uma jovem grávida no primeiro plano de uma obra com um título que remete a um feito histórico, Paula Rego desloca o foco para a mulher que, apesar de seu filho por nascer, traz um olhar extremamente angustiante, quase agonizante. Esse corpo, sobre uma colcha vermelho-sangue e uma vestimenta com símbolos náuticos, em posição horizontal, opõe-se à verticalidade da cena sacra em segundo plano, questionando a grandeza de um feito heróico de um mundo falocêntrico e imperativo pela violência.
Paula Rego inverte a cena do quadro de Meirelles, reproduzido como uma gravura, acrescenta as caravelas e destaca o mar, além disso, a obra, já alterada, aparece apenas como simulacro de uma paisagem.
"O deslocamento de foco, a inexatidão intencional, e a angústia da jovem que jaz, de costas para um momento histórico racialmente harmonioso, mas que os parâmetros metaficcionais do quadro expõem como sendo afinal pura ilusão, ou pior, falsificação”.(LISBOA, Maria Manuel - “Admirável mundo novo? A Primeira Missa no Brasil de Paula Rego.” - 1998)
A pintura de Meirelles reflete o momento em que o país quer criar suas raízes próprias, independentes de sua mãe européia, ou seja, para construir sua mãe pátria, comete um matricídio; do mesmo modo, no quadro de Rego a maternidade dá as costas para o passado sangrento, ilusório e patriarcal.
PS: VOLTAREMOS À PAULA REGO
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