janeiro 13, 2008

'Natureza feminina' desconstruída


Filósofa dizia que palavras como estas são armadilhas que aprisionam numa suposta diferença original

Leda Tenório da Motta

No momento em que se comemora, mais para discretamente, dentro dos muros universitários franceses, o centenário de nascimento de Simone de Beauvoir, não há como fugir de certas verdades estabelecidas, que não são idéias feitas, no sentido pejorativo de Flaubert, mas têm a ver com a força da evidência.

A primeira delas é que 'não se nasce mulher', o célebre enunciado de O Segundo Sexo, que ainda está em nossos ouvidos, mais de meio século depois de sua formulação, em 1949, data da publicação do então escandaloso livro, que se permitia tocar na sexualidade da forma mais direta, e ainda por cima, apontar a misoginia dos mulherengos surrealistas, vai desconstruir para sempre a assim chamada 'natureza feminina'. Muito antes de Jacques Derrida e sua suspeição sistemática da inocência dos discursos 'logofalocêntricos', temos aí, deliciosamente cunhada em forma de máxima, que aliás também se antecipa à boutade lacaniana segundo a qual 'não existe A mulher', a ressonante denúncia de que a 'feminilidade', e tudo o que vem com ela, o 'eterno feminino' e o 'mistério feminino', nada mais são que palavras com que se estigmatiza a mulher. São armadilhas que a aprisionam numa suposta diferença original, a exemplo do que também se faz com o judeu e com o negro, para melhor transformá-la no 'outro', entendido como ameaçador. Mesmo quando na boca dos poetas, são o álibi mesmo da opressão e da tutela exercidas milenarmente sobre a mulher. Daí a não menos célebre oração coordenada, que imediatamente arredonda o axioma: 'Não se nasce mulher, se é transformado nisso.' (On ne nat pas femme: on le devient).

A segunda evidência é que essa obra magistral, monumental e fulgurante, que convoca a biologia, a antropologia, a história, os imaginários artísticos e até mesmo a psicanálise vienense, então em vias de implantação, para estabelecer um imenso dossiê, ao revés do qual responder, sem apriorismos, à pergunta 'o que é uma mulher?', constitui-se na fundação mesma do feminismo moderno. Ela é o ponto de partida de tudo o que se segue em matéria de estudos de gênero e processos de libertação. A própria Betty Friedan, em seu tempo, o reconhecia. O fato é tão mais digno de nota quanto Um Teto Todo Seu de Virginia Woolf - em que vibra uma outra proferição feminista famosa sobre a irmã de Shakespeare, que se tivesse existido e porventura fosse tão genial quanto o criador de Hamlet, ainda assim nunca teria chegado a se equiparar ao mano, porque fatalmente teria sido destinada à alienação do casamento - antecede O Segundo Sexo de exatos 20 anos.

Não deixa de ser perturbador que a intervenção que vem antes, e com tal assinatura, fique em segundo plano, e seja a segunda a que celebramos como a inaugural. Não só porque as reflexões de Virginia Woolf, por exemplo, sobre como Jane Austen e as irmãs Bronte escrevem mal porque escrevem como mulheres, são, por seu turno e a seu modo, supremamente instigantes, mas porque, como muitos concordam em dizer, é nos países protestantes que o feminismo vai se mostrar mais forte, porque se está aí longe do culto à Virgem, logo, das idealizações mariais do feminino. Realizado aos 41 anos de Beauvoir, como um trabalho da maturidade, que veio a ser o mais clássico dentre seus muitos clássicos, O Segundo Sexo desmente todas essas razões. E se tivermos em mente a grande crise das categorias genéricas com que estamos envolvidos hoje, como atestam as paradas gays, podemos pensar que ao seu milagre se soma ainda uma perfeita atualidade. Há um trecho no primeiro tomo em que Beauvoir fala da delicadeza feminil das odaliscas, notando que isso não impede seu lesbianismo. É uma verificação sutil, difícil de se fazer na entrada dos anos 50, que livra as viragos dos signos obrigatórios da virilidade e, muito embora Beauvoir acompanhe Sartre em seu desgosto por Freud, vai ao encontro do freudismo, quando desfaz o elo entre anatomia e destino sexual. Além do mais, essa é uma espécie de previsão das inversões sem o espetáculo da inversão, tais como as conhecemos agora que elas saíram da surdina e dos espaços exóticos confinados.

Não é de estranhar, pois, que, no arredondar dos 100 anos de nascimento, quando surge mais uma biografia de Beauvoir feita por uma mulher - desta vez, Huguette Bouchardeau, notória feminista e ex-ministra do Meio Ambiente no governo socialista de Laurent Fabius - tudo isso venha à baila.

Mas felizmente para os amantes da literatura e do pensamento de linha francesa, não se trata só disso. Há mais que a promoção da mulher, e de modo geral, mais que a defesa das belas causas - o anticolonialismo, as campanhas contra a guerra da Argélia, as denúncias do apartheid, a execração do anti-semitismo -, todas abraçadas em pacto com Sartre e com a plataforma de Sartre, a pôr na conta das contribuições da autora de Memórias de Uma Moça Bem Comportada (1958). A começar pelo memorialismo, justamente. Roland Barthes notou que Proust impôs o memorialismo ao século 20. Se não os reduzirmos à paixão política, os escritos de Beauvoir, associando reflexividade e estilo, para levantar uma história das mulheres que passa pela sua própria história de mulher, devem figurar entre o que de mais refinado se fez neste campo, no novecentos.

Não enclausurar Beauvoir em nenhuma gaveta conceitual é uma justiça que faz o Colóquio Internacional Beauvoir 2008, que acaba de ocorrer em Paris, na sede do Collège des Universités, sob a direção de ninguém menos que Julia Kristeva (que no entanto não inclui Beauvoir em sua trilogia O Gênio Feminino, de 1999, dedicada a Hannah Arendt, Melanie Klein e Colette). Assim, quem passar os olhos no programa, disponível no site http://2008beauvoir.blogspot.com, verá que, mais que a introdutora dos gender studies, que depois se tornariam a mania das universidades norte-americanas, e mais que a companheira e a seguidora de Sartre, que não deixa de referi-lo quando, na segunda parte de O Segundo Sexo, põe em marcha a premissa de que a existência precede a essência, partindo para investigar não a feminilidade em abstrato, mas a vida real das mulheres de carne e osso, a Simone de Beauvoir que hoje se cultua intramuros é principalmente a escritora e a filósofa. E melhor dizendo, a escritora-filósofa. As duas coisas inseparavelmente e, como diriam os franceses, à part entière, quer dizer, sem que uma empane o brilho da outra. Tudo como na grande tradição francesa a que se filia a escola sartriana, aquela que começa com Montaigne e continua com estes romancistas, contistas e dramaturgos que foram Voltaire, Rousseau e Diderot. Círculo, aliás, poupado no cortante dossiê beauvoiriano, já que o 18 francês convida a olhar a mulher de modo fraterno e igualitário e, se inaugura o discurso sobre a natureza, abrindo caminho para as formalidades burguesas, nem por isso aprisiona o feminino na natureza diversa que a caça às bruxas, ainda em prática na França no século da Grande Revolução, por isso mesmo, perseguia como adversa.

Há inúmeros ângulos de ataque ao legado de Beauvoir nos diferentes painéis do colóquio de Kristeva. O mais longo dos fóruns, que repassa todas as questões sobre as quais Beauvoir filosofou - a mulher, a sexualidade, a ambigüidade, a alteridade, o amor, a amizade, o próprio envelhecimento, o próprio Sartre -, se intitula Écrire l'Intime (Escrever a Intimidade). É nesse campo temático que vamos encontrar Claude Lanzman, colaborador de Le Temps Modernes e realizador de Shoah (1985), filme que surpreendeu o mundo ao levar para o cinema, do modo mais estilizado, na contramão das convenções de sobriedade antiartística do gênero testemunho, a discussão contemporânea sobre a representação da catástrofe. Dessa administração do horror absoluto, que resulta tanto mais comovente quanto é teatral, Beauvoir foi a primeira a dizer que era pura poesia, dando a entender com isso que o conhecimento do mundo em volta passa pela sua transfiguração, e lançando com isso luzes sobre ela mesma.

Mas como não se poderia esquecer também, em tal momento, que além de um feminismo e de uma filosofia produzida com estilo, a herança de Beauvoir encerra ainda uma afirmação da atitude, graças à qual o existencialismo se performa a si mesmo - e tão mais vigorosamente, neste caso, podemos pensar, quanto envolve uma mulher -, é igualmente feliz que Philippe Sollers, como bom entendedor do assunto que é, entre noutro ponto das discussões, com uma conferência sobre Les Amours de Beauvoir.

Do que será que falará este homme à femmes? Ficamos aguardando desde já a publicação dos anais do encontro, tão mais curiosos quanto sabemos que há caminhos fascinantes a percorrer igualmente aí. A palavra 'amores', no plural, que refere à relação aberta com Sartre, é particularmente interessante para marcar a coerência de quem ousou irritar-se com Breton e companhia por tanto buscarem nas mulheres 'a mulher'. Nos surrealistas como em D.H. Lawrence, Montherlant e até em Stendhal, embora menos em Stendhal, cujas mulheres se masculinizam, Beauvoir vê trabalhar, junto com a platonização dos sujeitos femininos, o que chama de 'orgulho fálico'. É outra tese das mais contemporâneas. E diga-se que Beauvoir a soube defender com tal brio e tal fôlego que não podemos descartá-la rapidamente, com um piparote, pondo-a no saco de gatos que Harold Bloom, com razão, chama de 'escola do ressentimento'.

Sem falar que os casos paralelos de Beauvoir, entre outros com Lanzman, com quem ela chegou a morar, também não podem ser tomados como simples réplicas feminis ao comportamento de Sartre. Na verdade, até por ser boa comentadora da literatura, Beauvoir sabe que o amor é extraconjugal e, no fundo, descortês. Afinal, toda a cortesia, cujas canções estão na origem de todas as figurações românticas da paixão, nada mais é que um imenso flerte com o adultério, a julgar pelo fato de que as impossíveis senhoras em volta das quais giravam os trovadores medievais, estavam todas encasteladas e eram todas casadas! A psicanálise ensina que era justamente por isso que eram desejadas. Em suas brilhantes Contribuições à Psicologia do Amor - existem três delas -, Freud assinalou a existência de duas correntes inconciliáveis, que fazem com que o objeto a que se dirigem os sujeitos apaixonados não esteja nunca lá. A corrente terna, dos homens que amam mulheres que não desejam tanto assim carnalmente, e a corrente dos homens que desejam carnalmente mulheres a que não dedicam um amor verdadeiramente gentil.

O não casamento heróico de Beauvoir enfrenta essa tensão. Talvez por isso, como nas melhores histórias de amor, ela esteja hoje enterrada ao lado de Sartre, no cemitério de Montparnasse.

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