janeiro 08, 2008

EUTANÁSIA


Eutanásia
RUBEM ALVES


Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música


SEMPRE QUE SE FALA EM EUTANÁSIA ,os seus opositores invocam razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus e que, portanto, somente Deus tem o direito de tirá-la. Eutanásia é matar uma pessoa e há um mandamento que proíbe isso. Assim, em nome de princípios universais, permite-se que uma pessoa morra em meio ao maior sofrimento.
Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse que, se ele fosse escrever um livro sobre ética, 99 páginas estariam em branco e na última página estaria escrito "amor". Todos os princípios éticos que possam ser inventados por teólogos e filósofos caem por terra diante dessa pequena palavra: "amar". Deus é amor.
O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco, numa situação semelhante. Amo os cães e já tive dezenas. Muitos deles eu mesmo levei ao veterinário para que lhes fosse dado o alívio para o seu sofrimento. Fiz isso porque os amava, eram meus amigos, queria o bem deles. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse na situação de sofrimento deles.
Defender a vida a todo custo! De acordo. É a filosofia de Albert Schweitzer e a filosofia de Mahatma Gandhi: reverência pela vida. Tudo o que vive é sagrado e deve ser protegido. Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais. Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso, todos os esforços devem ser feitos.
Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite, ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir.
A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso. Admitamos, para efeito de argumentação, que a vida é dada por Deus e que somente Deus tem o direito de tirá-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que tenha por objetivo fazer com que a vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.
Vamos levar o argumento à suas últimas conseqüências: se Deus é o senhor da vida e também o senhor da morte, qualquer coisa que se faça para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente, se o corpo fosse entregue à vontade de Deus, sem os artifícios humanos para prolongá-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente, porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus.
A vida, esgotada a alegria, deseja morrer. O que eu desejo para mim é que as pessoas que me amam me amem do jeito como eu amo os meus cachorros.

4 comentários:

Anônimo disse...

Nada mais oportuno o tema da eutanásia.Esta manhã, comento com uma amiga, a morte recente de uma amiga comum, vítima de cancro, e muito sofrimento. Soube que deixou uma frase escrita, que está sobre a sepultura, para a posterioridade, " Não tenho medo de morrer. Medo tenho de estar viva e não poder viver"
Não caberá aqui a eutanásia?

Anônimo disse...

Nada mais oportuno o tema da eutanásia.Esta manhã, comento com uma amiga, a morte recente de uma amiga comum, vítima de cancro, e muito sofrimento. Soube que deixou uma frase escrita, que está sobre a sepultura, para a posterioridade, " Não tenho medo de morrer. Medo tenho de estar viva e não poder viver"
Não caberá aqui a eutanásia?
António

Anônimo disse...

Parabéns pela escolha da imagem para simbolizar a Eutanásia " Pessoa à janela" de Dali.
Para mim uma dupla interpretação" virar costas à vida" libertando-se do sofrimento, acreditando no finito da dor através da janela para a infinitude do universo.
António

Anônimo disse...

Antonio
A imagem não está ali por acaso.
Fico feliz por vc haver captado o sentido que ela teve para mim.
bjo
zélia