dezembro 20, 2007

O vestido revolucionário de Frida Kahlo



O quadro de Frida Kahlo “Meu vestido pendurado ali” não tem despertado o mesmo interesse nem a atenção como outras de suas pinturas. Talvez porque, aparentemente, a artista _cujos centenário de nascimento se comemora neste ano_ não esteja lá, no quadro, pelo menos não tão visceralmente presente como em muitas de suas pinturas.

Nos anos 90, revistas femininas nos Estados Unidos (“Elle”, “Vogue”) “traduziam” Frida Kahlo (1907-1954) em suas páginas em estilo mexicano, transformando seus vestidos em roupas atraentes nos corpos de belas modelos, posando em casas ensolaradas e supostamente também mexicanas. Queriam transformar a difícil obra dessa mulher em imagem palatável, pronta para ser consumida. Retocavam suas veias, o sangue, as cicatrizes, os pelos de sua face e a morte.

Em vez de sua imagem real, manequins esguias a retratavam com exagerada maquiagem, vestidos provocantes e pernas nuas. Ela era representada nesses novos vestidos e nos cabelos soltos das modelos. Parecia que a única maneira de introduzir Frida Kahlo nos Estados Unidos era fazê-la passar por essa lavagem cultural, como se fosse pintora da moda, bela e aceitável ao gosto dominante. Atualmente, alguns de seus quadros estão cotados em até um US$ 1 milhão.

Entretanto, nem todos gostam do que ela pintava e nem todos a reconheceram pelos olhares de “Elle” ou “Vogue”. Ao comentar com uma amiga sobre Frida, a reação não demorou: “Não é aquela pintora com bigodes, que trata de temas melancólicos? Ela é demasiadamente estropiada!”.

Nessa asserção, o que fica de Frida parece ser somente as marcas fortes de seu rosto e seus símbolos de morte. Talvez por isso, aquilo que parece ser uma enorme crueza e intensa feiúra na obra de Frida é rechaçado ou necessariamente revisado e embelezado, para torná-la aceitável aos padrões da classe média norte-americana. A própria definição que André Breton fez de Frida e de sua arte -“uma fita ao redor de uma bomba”- acaba por fazer quase o mesmo das revistas norte-americanas. Ao enlaçar a bomba com uma fita, a fita distrai a bomba e a bomba acaba por ser um mero elemento para mostrar a fita.

Se em Breton a bomba precisa da fita para traduzir beleza, nas revistas de moda o caminho é mais fundo, tentando redimir Frida de si mesma, de seus tormentos e pensamentos de morte. Uma vez redimida, sua obra torna-se sexy, colorida, bela, e ao final de tudo, mais consumível. Nas revistas, os tons revolucionários, nacionalistas e marxistas presentes em suas pinturas parecem nunca terem existidos.


Vestidos com compromissos

Os vestidos de Frida não eram escolhidos por causa apenas da beleza, mas expressavam compromissos culturais com os povos indígenas, principalmente astecas, com os quais se identificava. Sua arte envolvia e revolvia recursos intelectuais e experiências dos contextos que ela gostaria de verem refletidos em seu país.

No quadro citado (“Meu vestido pendurado ali”), ela usa um vestido tehuana. Janice Helland comenta: “É provável que a imagem dos vestidos das mulheres zapotecas que representam ideais de liberdade e de independência econômica tenham, por isso, chamado a atenção de Kahlo” 1.

Seus vestidos e colares fazem relembrar os vínculos de Frida com seu povo. Ao usar vestidos tehuanos de mulheres zapotecas, além de colares que traziam o imaginário azteca, Frida parece querer lembrar que são essas mulheres, esses povos colocados à margem da universalização cultural (não fora da estrutura, mas nas margens) que estão ali pendurados, colocados entre as fronteiras da assimilação, do extermínio, mas da resistência.

No quadro citado, uma enormidade de referências culturais, políticas, sociais, religiosas e econômicas são postas em relação e tensão, e entre essas referências mundos cheios de história e materialidade são construídos, coabitados, transformados e destruídos. Helland descreve o quadro: “Um vestido, um telefone, um troféu esportivo, a figura de um dólar ao redor da cruz entrando num edifício federal, como símbolo financeiro, e Mae West, no papel da fantasia de Hollywood. Essas fotografias destacam o destino dos desempregados da era da grande Depressão na parte inferior do quadro e mostram o contraste entre a riqueza e a pobreza na sociedade americana” 2.

O vestido tehuano de Frida pendurado num cabide, num varal de fita de laço, entre os Estados Unidos e o México, reflete a vida de povos inteiros, ao mesmo tempo presentes e ausentes, em meio a diálogos surdos e medidas culturais e econômicas excludentes que essas mesmas fronteiras constroem e destroem.

Os vestidos das mulheres zapotecas vão parar nas revistas de moda sem que nunca se saiba da significação que se dá “no chão mesmo da América Latina de uma tradição-tradução de memória libertadora de mulheres” a respeito das “variações e as rupturas com as linguagens de conhecer o corpo no mundo e o nosso, devorá-los como aprendizagem sexuada e cultivar alternativas de produção e reprodução da vida: economia, erótica, ecológica, epistêmica, ética e estética” 3.


As roupas e as fronteiras

A obra de Frida se situa entre fronteiras. Muitas vezes desenvolve uma estrutura dualista, mas sempre desafia os lados, os espaços de dentro e de fora, o que é de lá e o de cá. Mulheres têm seus órgãos internos colocados para fora, o sangue corre tanto por fora quanto por dentro das veias, duas e várias partes de nós mesmos são colocadas lado a lado, como uma coisa só e, ao mesmo tempo, quase distintas. O amor, a traição, a natureza (viva ou morta?), o suicídio, a dor, a morte -tudo acontece em meio à vida sempre pulsante de seus quadros.

Sua arte demonstra clara consciência da presença fulcral da fronteira, especialmente das conseqüências desse espaço tênue em que se situa a luta do povo mexicano por identidade. No final dos anos 20, o México esforçava-se para criar um sentimento de nacionalismo e de orgulho em seu povo. Os Estados Unidos pareciam já mostrar que a cultura “norte-americana” era dona de uma geografia excludente, invasiva (partes do México foram roubados pelos Estados Unidos) e parâmetro da cultura civilizada, universal e hegemônica 4.

Como tentativa de resistir a esse sistema solapador e mesmo tentar subvertê-lo e desfazer os aportes universais da cultura americana, o México foi buscar em seus elementos culturais pré-hispânicos e indígenas formas de se conscientizar, preservar, amparar e desenvolver uma cultura que fosse verdadeiramente nacional. Estas tentativas, entretanto, acabaram por abusar de elementos indígenas, e os mexicanos acabaram por criar caricaturas de si mesmos 5.

As fronteiras regulam, contêm e excluem. São aparatos de controle, concretos e simbólicos, paradoxais e determinados, misturando espaço, poder, conhecimento, economia e identidade. Têm a ver com espaços limítrofes e imaginários: margens, territórios, articulações geopolíticas, linhas e limiares em constante relação, separando, demarcando e costurando lugares e posições.

São espaços nervosos, cheios de ansiedade 6, e permeáveis ao que ainda não conhecem. Sua proteção está sempre ameaçada pela chegada do inesperado, e suas bordas vulneráveis. Nas palavras de Roxanne L. Doty, “as fronteiras já são ameaçadas desde seu aparecimento. A possibilidade sempre presente de serem atravessadas é inerente à sua instituição, coisa que as torna indecidíveis, indistintas e ameaçadas” 7.

Os vestidos de Frida vestem e despem as partes porosas das fronteiras religiosas, culturais, políticas e sexuais, não só do México e dos Estados Unidos, mas de todo o continente americano. Nada é categórico; tudo se desenvolve no vento de referências e bases culturais escolhidas.

Suas roupas tornam as fronteiras “categóricas” em passagens permeáveis e em possibilidades de práticas transgressoras, produtoras de conexões fronteiriças que tornam as linhas divisórias e invisíveis em visíveis e ideológicas.

Da mesma forma que os vestidos, Frida vestia também os “rebozos”, que eram chales feitos de vários tipos de material (algodão, seda ou lã), bordados com longas franjas e usado por mulheres de todas as classes sociais. Em diferentes fotos, Frida usa vários destes “rebozos”, por vezes de seda, próprio das classes mais altas e também de algodão, como as “revolucionarias soldaderas” 8.

Novamente, a roupa con-fundia as noções de revolucionária, de “soldadera”, de classe, de cultura, de colônia e de nação. Da mesma forma ela confunde noções quando em seu quadro “Auto-retrato na fronteira entre México e Estados Unidos”, de 1932, e pintado em Detroit, ela usa um vestido colonial, com colar de estilo coatlicue da deusa da terra azteca, ao mesmo tempo que veste luvas de laço e sem dedos.

Para Rebecca Block e Lunda Hoffman-Jeep, “Kahlo se coloca na encruzilhada, elaborando e concretizando posições pessoais e políticas... Existe uma considerável ironia na maneira satírica que Kahlo faz da manipulação da cultura” 9.

Novamente, há uma enormidade de justaposições entre sua roupa, seus adereços, a bandeira de parada cívica do México, o bico dos seus seios visíveis e os enormes símbolos da cultura moderna presente ao lado dos Estados Unidos, como a Ford, os maquinários, a poluição e a pré-modernidade vivenciada no lado do Mexico, com seus templos e símbolos religiosos pré-colombianos ligados à terra.

Assim, os vestidos e as formas de vestir de Frida se misturam com a vida inteira. Eles anunciam fraquezas e forças, carregam referências culturais, econômicas, sociais, econômicas, sexuais e nacionais. São mais do que a fita na bomba que é o corpo. Permeiam, interagem, e relacionam peles, lugares, povos, toques, visões e cheiros de mundo. Como disseram Block e Hoffman-Jeep, “Kahlo era particularmente consciente da habilidade que as roupas tinham em comunicar informação acerca de gostos, princípios, carácter e sentimentos de uma nação” 10.

Seus vestidos marcam as condições das possibilidades da construção de cada país e do relacionamento entre eles, como a maneira de cada um estabelecer suas estruturas culturais e escolher seus valores simbólicos. Os vestidos apontam para corpos que o vestem ou que estão nus, de roupas que mobilizam a indústria da moda e como esta estabelece noções, que vão desde as medidas ideais do corpo até os critérios de alimentação, de ênfases econômicas e consequentemente de classes sociais.

Assim, os vestidos também indicam a fragilidade do corpo feito forte e desmesuradamente belo, o desequilíbrio, o inóspito, os lugares inabitáveis. O vestido de Frida veste uma realidade ao mesmo tempo oculta, perturbadoramente clara, e demasiada densa e complicada. Os vestidos pedem a atenção do nosso olhar entre as tantas referências. Os quadros de Frida fazem nossos olhos tornarem-se performáticos, ritualizando os contornos entre o imaginário e o real. Como diz Ronald Grimes, “Ritualizamos para tornar real o evento” 11.

Esse mapeamento dos encontros humanos e vivos anuncia, denuncia, acumula e precipita uma situação que é nossa, no mundo, encarnada nas vísceras, veias e peles de nosso próprio corpo. Nossas roupas e nossos vestidos se desgastam, perdem o lugar na moda, se modificam, são re-usados, assim como nossas referências todas. O corpo também se esvai, assim como se escoam a fama e os corpos das modelos. O que fica, ou parece ficar, é o poder econômico “que ergue e desfaz coisas belas”, que faz viscejar e renovar o eternamente novo, re-usável, banalizado, a cada nova temporada do fashion week.


Costurando mitos e religião

A referência religiosa nas obras de Frida vinha de povos abandonados e marcados pela probreza. Em seus quadros e fotos, seus vestidos e colares eram rodeados e mesmo marcados por aspectos religiosos presentes na cultura mexicana. Em seu quadro “Auto-retrato na fronteira entre México e Estados Unidos”, seu vestido está ao lado de elementos como o sol, lua, templo, caveira, sangue, o ciclo vida-morte azteca, e outros elementos da terra que servem para compor referências culturais, religiosas e teológicas do México.

Além das expressões religiosos pré-colombianas, a obra de Frida faz fortes referências ao catolicismo popular, como as coleções de milagres, os “retablos”, que Frida guardava. A Virgem Maria e os santos, Jesus Cristo, seu sofrimento e todo o imaginário católico são símbolos recorrentes na sua obra.

Andrea Kettenmann diz que Frida “via os quadros religiosos que utilizava como expressões de crenças essencialmente populares, que não dependiam, pelo seu significado, da Igreja Católica. Assim, podia utilizar livremente o imaginário cristão para seus próprios fins e apresentar-se a ela própria no papel de mártir”

O que parecia interessar Frida em meio à questão religiosa, eram os movimentos desvinculados do poder central, unívoco, de controle absoluto das religiões. Os símbolos das religiões pré-colombianas eram sinais de independência e autonomia de um povo que construiu seu mundo, autenticava o passado e sinalizava vínculos necessários do povo mexicano.

Para Frida, essa força religiosa nativa tinha muito mais a ver com a identidade mexicana, e deveria criar resistência à força e aos vínculos de feitio e feitiço econômico-religioso interconnectados nas fronteiras entre os Estados Unidos e o México. Também não interessava a Frida o catolicismo romano oficial com suas doutrinas corretas e posições teológicas, mas, sim, a recriação que o povo fazia com os elementos oficiais do cristianismo recebido pelos conquistadores.

Assim, as religiões pré-colombianas e o catolicismo popular carregavam uma verve imaginária, uma outra teologia, sem o “teos” (Deus) necessariamente autorizado, e a “logia” (lógica, conhecimento) tradicional do Ocidente. Ao contrário, a teologia popular é o engendramento do sagrado a serviço da vida em suas expressões mais agudas, em seus desejos de materialidade, bênção e festa. A teologia popular traduz um outra tradição-tradução, um outro conhecimento, da vida e de Deus, e se dá continuamente ao refazimento que for, dependendo das necessidades do povo.

Os vestidos das mulheres mexicanas traziam essas referências religiosas, fazendo com que a religião ficasse dependurada no e com os vestidos. Assim, Frida desenvolve uma religiosidade e mesmo uma teologia que era nascida e fomentada a partir de experiências sincréticas e das vicissitudes do povo, em continuidade, contraste e oposição à religião oficial. Seus vestidos talvez se empenhem em contemplar uma fé dependurada, paradoxalmente incerta, não fixa, que se dá continuamente na materialidade do roçar do vestido com o corpo, corpo sexuado ambíguo, para recriar o mundo do jeito que quiserem.

Assim, o vestido de Frida, das mulheres mexicanas do norte, do centro e do sul da america está pendurado ali. E nós também. O vestido não está ali por acaso mas sim em meio a um redemoinho de fronteiras, limites e referências que a traduzem e silenciam. É revolucionário porque desfaz e confunde os limites estabelecidos e anuncia uma outra possibilidade, enviezada da oficialmente anunciada.

O vestido está pendurado ali sem seu corpo quebrado. Que faz com que o vestido esteja lá, pendurado, e nos assegure que lá esteja ainda? O vestido pendurado nas fronteiras desarma as formas de conhecimento, incluindo o conhecimento religioso. O vestido fala da transitoriedade, da resistência, da fragilidade e da força do vento, coisas mais ligadas à religiosidade popular do que aos sistemas de fé oficiais e sistemáricos.

O vestido desse quadro traz uma identidade de um “lá/aqui” indefinível. Esse vestido parece ocultar o que não se pode saber; está aqui mas também em outros lugares (aqui, cá, lá, acolá, aqui ali, além). Está pendurado lá, num contexto complexo, possivelmente vulnerável a negociações infindas. O vestido fala e silencia corpos ausentes, desterritorializados, jogados para algum lado invisível na malha de relações das fronteiras. Eles servem de sinalizador de algo que se foi, ou que ainda está ali mas renunciado, negado, escondido.

Por fim, acredito que Frida nos dá um instrumento teológico novo: um vestido! E um lugar: “lá.” Nossa tarefa talvez seja a de discernir o vestido, os corpos presentes-ausentes e o lugar desterritorializado onde estão os vestidos e os corpos. Assim, os vestidos falarão de nós mas a partir dos corpos e os vestidos dos outros, entre as fronteiras de nós mesmos e das nações que nos cercam, aqui e lá, sendo esse lá onde quer seja. O vestido de Frida está lá na fronteira, mas nós também.

Claudio Carvalhaes
É doutor em teologia, liturgia e artes no Union Theological Seminary e Universidade Columbia. É autor de "Transgressões: Religião, Performance e Arte" (ed. Emblema). Site: www.claudiocarvalhaes.com.br

Um comentário:

Anônimo disse...

­Carmen
Muito interessante a análise de Claudio Carvalhaes sobre o quadro.
Abraços